domingo, 15 de junho de 2008

Anestesia

Anestesia

A anestesia é um processo conhecido e útil como auxiliar da medicina na realização de operações ou tratamentos dolorosos. Mas é, também, antes de mais, a simples perda da sensibilidade, da capacidade de sentir. A tão falada indiferença que, em maior ou menor grau, nos ataca ao vermos imagens de violência ou de miséria banalizadas através dos media é o resultado de uma anestesia, provocada pela repetição, a um ritmo que não deixa margem para uma reflexão dolorosa, daquelas imagens. A distracção é outra forma de anestesia. Todos os espectáculos de massas que não despertem uma experiência emancipadora do ser humano no sentido da sua autonomia e do seu crescimento, que visem apenas a sua distracção inconsequente, são uma poderosa forma de anestesia na medida em que o afastam, alienando-o, do confronto com a realidade, com as suas dores mas também com a sua beleza surpreendente. É o caso dos mundos virtuais do espectáculo futebolístico, da telenovela ou dos reality shows. Uma outra forma de anestesia é o fatalismo, segundo o qual as coisas são como são por desígnio divino (a famosa expressão “porque Deus quis”) ou natural. Assim, o nosso sistema económico e social, o capitalismo neoliberal, seria um sistema natural, o melhor dos sistemas realizáveis, com as suas crises cíclicas e as suas retomas (tal como a sucessão das estações do ano) e com algumas consequências mais nefastas mas inevitáveis (tal como as catástrofes naturais). Toda a tentativa de ultrapassar o sistema seria contra-natura e condenada por isso ao fracasso. Eis, porém, que um facto vem estragar esta certeza: nem a Natureza é natural; a Natureza tem uma história, que não acabou, e aquilo que nos parece natural porque tem uma idade avançada nem sempre existiu, e um dia acabará. No nosso país de brandos costumes tem sido uma constante a crença na inevitabilidade do nosso destino, controlado pelas forças divinas, que se cruza com a crença no natural. Cremos facilmente, e cada vez mais, que determinados factos inaceitáveis são naturais e estão para lá da nossa vontade: é natural que tenhamos que pagar tudo e sejamos mal servidos, que tenhamos salários baixos, que os ricos sejam ricos e os pobres sejam pobres, que os governantes nos governem mal, que prefiram dar-nos fontes luminosas e estádios a saúde, educação, saneamento básico ou transportes, que tenhamos que viver em eterno sacrifício. Mas nada disto é natural: pode e deve ser mudado. Antes de mais, é preciso resistir à anestesia.
Publicado no "Jornal do Centro" não sei bem quando

5 comentários:

samuel disse...

Tudo há-de melhorar, se deus quiser... :)))

Peço desculpa, não resisti. Bom post!
Cheguei aos trambolhões, empurrado pela Sal e descubro que o "Cantigueiro" está aqui em exposição.
Vou já tratar de colocar o "Linha do Vouga" na lapela do Cantigueiro.

Abraço

Anónimo disse...

É por estes e por outros artigos
"subversivos" que o tal "jornal do centro" resolveu "esquecer-se" de publicar textos tão "incómodos".

Pensar, reflectir pode-se tornar "perigoso" para a comodidade e o remanso de certa "gente de bem".

Campaniça

GR disse...

Somos um povo fatalista, já fomos mais.
O trabalhador lentamente começa abrir um olho, e que a Europa é diferente. Onde???
Começou já abrir o outro olho, reparando que a diferença está, nos salários, na qualidade de vida, na...
Isto vai meu amigo, isto vai.

Gostei muito do texto.

GR

Anónimo disse...

Isto vai. A censura actuou impiedosa no Jornal do Centro, todavia, aqui surge a oportunidade de demonstrar aos escribas do ttemplo e do dinheiro como se escreve com dignidade ao mesmo tempo que se denuncia a censura dos democraciáticos senhores. Ou senhoras!...

Lúcia disse...

Este texto toca em muitos pontos importantes. Mas, resumindo: esta anestesia é histórica. E temo que vá continuar a existir cada vez mais: "o que é natural é assim - é o destino; quem somos nós para mudar". Não o digo por pessimismo, mas por um motivo básico (todos os outros decorrem daí) - deficiente Educação ministrada em Portugal (nem vou explorar aqui os motivos). Mas um povo com baixo nível de Educação (atenção que eu não estou a falar de habilitações escolares - estou a falar de Educação - aprendizagem activa+afectos+aquisição de conhecimentos - tudo isto no espaço escolar)será sempre menos contemplativo. O seu poder dé análise, crítica e descontrução do que lhe é dado como certo será mais baixo.
Abraço
(este blog promete)