Vasco Gonçalves foi o rosto de um momento em que essa vitória pareceu próxima. Por um momento, foi possível em Portugal iniciar transformações sociais profundas, concretas. Por um momento, os privilégios tradicionais estiveram seriamente ameaçados. Foi um dos períodos mais fascinantes da nossa história, no qual Portugal experimentou uma nova construção nas relações sociais – muito sua, sem modelos, passível de ser bem sucedida. Um período que acabou como se sabe. Mas que aconteceu, realmente, em Portugal, e este facto paira como um espectro junto da direita portuguesa (assumida ou não). Por isso, o tratamento mediático dado à morte de Vasco Gonçalves não conseguiu disfarçar o desconforto e o incómodo por ter que se falar nisso. Algum receio, quem sabe, de que se recordasse aquilo que se recordou na manifestação popular que foi o seu funeral: Vasco Gonçalves foi o único primeiro-ministro português que governou em favor dos trabalhadores. Talvez por isso, por vergonha, nem o Governo nem o Presidente da República se fizeram representar no funeral. Ou talvez com medo de ser confrontados com a sua ridícula insignificância. Vasco Gonçalves foi um homem de uma extrema doçura, que amou e defendeu sempre “o seu povo”.
O mesmo povo que Álvaro Cunhal serviu sem vacilar durante os seus 91 anos de vida. Essa é uma verdade quantas vezes escamoteada, mas ainda assim reconhecida por esse povo. Álvaro Cunhal foi um homem. Ao contrário do que apregoaram algumas figuras pequeninas, daquelas que povoam o nosso ruído mediático, armadas da sua pseudo-intelectualidade e das suas cassetes, Álvaro Cunhal não foi um deus nem um mito, foi um homem. E, como tal, foi um exemplo raro de entrega sem reservas de uma vida ao colectivo que é o povo português. A sua inteligência e lucidez invulgares, a sua energia, mas também a sua liberdade, o seu sono, o seu conforto, os aspectos mais elementares da sua vida entregou-os, até ao último dia 13, à luta pelos trabalhadores portugueses. Ainda assim, foi um homem, um homem invulgar, mas um homem, de carne e osso. E, enquanto perdurar nas nossas memórias o seu exemplo de coragem inabalável, nenhum outro homem terá o direito de se acomodar numa suposta “natureza humana” para desculpar as suas próprias incoerências ou, simplesmente, a sua mediocridade.
Aos meus netos direi que tive a honra de conhecer homens grandes, corajosos, que se entregaram à humanidade. Obrigado, Vasco. Obrigado, Álvaro. Até sempre.