Anestesia
A anestesia é um processo conhecido e útil como auxiliar da medicina na realização de operações ou tratamentos dolorosos. Mas é, também, antes de mais, a simples perda da sensibilidade, da capacidade de sentir. A tão falada indiferença que, em maior ou menor grau, nos ataca ao vermos imagens de violência ou de miséria banalizadas através dos media é o resultado de uma anestesia, provocada pela repetição, a um ritmo que não deixa margem para uma reflexão dolorosa, daquelas imagens. A distracção é outra forma de anestesia. Todos os espectáculos de massas que não despertem uma experiência emancipadora do ser humano no sentido da sua autonomia e do seu crescimento, que visem apenas a sua distracção inconsequente, são uma poderosa forma de anestesia na medida em que o afastam, alienando-o, do confronto com a realidade, com as suas dores mas também com a sua beleza surpreendente. É o caso dos mundos virtuais do espectáculo futebolístico, da telenovela ou dos reality shows. Uma outra forma de anestesia é o fatalismo, segundo o qual as coisas são como são por desígnio divino (a famosa expressão “porque Deus quis”) ou natural. Assim, o nosso sistema económico e social, o capitalismo neoliberal, seria um sistema natural, o melhor dos sistemas realizáveis, com as suas crises cíclicas e as suas retomas (tal como a sucessão das estações do ano) e com algumas consequências mais nefastas mas inevitáveis (tal como as catástrofes naturais). Toda a tentativa de ultrapassar o sistema seria contra-natura e condenada por isso ao fracasso. Eis, porém, que um facto vem estragar esta certeza: nem a Natureza é natural; a Natureza tem uma história, que não acabou, e aquilo que nos parece natural porque tem uma idade avançada nem sempre existiu, e um dia acabará. No nosso país de brandos costumes tem sido uma constante a crença na inevitabilidade do nosso destino, controlado pelas forças divinas, que se cruza com a crença no natural. Cremos facilmente, e cada vez mais, que determinados factos inaceitáveis são naturais e estão para lá da nossa vontade: é natural que tenhamos que pagar tudo e sejamos mal servidos, que tenhamos salários baixos, que os ricos sejam ricos e os pobres sejam pobres, que os governantes nos governem mal, que prefiram dar-nos fontes luminosas e estádios a saúde, educação, saneamento básico ou transportes, que tenhamos que viver em eterno sacrifício. Mas nada disto é natural: pode e deve ser mudado. Antes de mais, é preciso resistir à anestesia.
Publicado no "Jornal do Centro" não sei bem quando